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Um dia especial

| segunda-feira, 4 de abril de 2011 | |
O tempo, se ela fosse escrever uma história, se ela fosse começar um texto, sobre aquele dia, com certeza seria sobre o tempo. Ela iria querer o tempo perfeito, não seria um dia com sol, mas um dia que normalmente todos acham feio, seria um céu cinzento, um tempo fechado, com aquele tom de uma tempestade se formando. Ela iria querer sentir o vento arrepiar sua pele, enquanto ela descia as ruas de pedra em direção ao portão, cada detalhe revivido em texto.

Iria descrever o rangido suave do portão de tinta vermelha descascada, enferrujado que ela queria ter trocado, mas não o fez, não importava. A sala justa e preta se esticando nas pernas grossas enquanto ela subia os degraus de pedra marrom, trincados e velhos, envoltos a paredes de cimento, fechada e sufocante, um corredor, uma última passagem. O salto preto, alto... De agulha, como se dizem, fazia barulho a ninguém anunciando sua chegada.

A sala de cortinas fechadas estava escura quando ela entrou, mas ela gostava. Ela ajeitou inutilmente as almofadas do sofá, mexeu na toalha feita pela avô na mesa me mármore branco, a tirou e colocou no lugar. Tirou os sapatos ficando descalço, tudo feito com calma, um ritual, ela subiu na mesinha, bateu o calcanhar no vaso de violetas, o derrubou no chão... Sujando-o de terra. 

Derrubou com olhos vagos os mimos da peça, sapinhos de porcelana, vasinhos e frutas de cristal, ouviu o som deles caindo. Andou pelo corredor, para o quarto, viu seu reflexo no espelho, os cabelos loiros e lisos, a aparência bonita, os lábios rubros de batom, os olhos vazios... Os dedos tirando o batom. Não haviam dito que ela era bonita no caminho?

Ela estava em silêncio, não tinha ninguém para falar com ela, nunca houve ninguém... Ela tirou as vestes, entrou na banheira, tocando o corpo para lavá-lo, ninguém nunca sabia o que se passava em sua cabeça. Como ninguém sabe nunca o que está na cabeça do outro. 

Água pinga de seu corpo molhando o piso, ela sorri no espelho, ela sabia que sempre podia sorrir, não importava o seu tempo. Ela não tinha amigos, mesmo achando que era uma boa amiga, ela era interessante, era legal, já tinham falado que ela olhava nos olhos quando falavam com ela, então por que ela não tinha amigos? Ela tinha estudado, cada livro que jogava no chão, enquanto seu corpo nu dançava pela casa no escuro.

Ela era inteligente, tinha feito faculdade e se formado e não tinha um emprego, não tinha nada que era seu, se considerava uma inútil fracassada, que tinha que tomar um comprimido que nem era para dormir, para a dor passar um pouco e ela dormir, como uma boneca que havia sido desativada. Ela sabia recitar os seus livros preferidos de cor.

" Deixai toda esperança, ó vóis que entrais!" Sim, ela entendia Divina comédia, havia lido isso... Havia lido Fausto, que ficara aberto no corredor. "Aí tens! Andando com idiotas até mesmo o Diabo se dá mal." Ah, ela ainda se lembrava dos outros, de Sartre principalmente, ela sabia filosofia, sabia ler e compreender qualquer texto, como nunca tinham compreendido a ela. Ela era inútil e fracassada.

Os dedos tiravam os comprimidos, as unhas de esmalte vermelho corroído, dessa vez não foram um ou dois, ela perdeu a conta, as cartelas vazias no chão, enquanto tomava, com leite e chocolate doce, cada comprimido de sono. Depois ela teria apenas meia hora, pegou um vidro de vodca e foi jogando em cada canto, as vezes bebendo um pouco, e por último um cigarro, ela acendeu um cigarro, deixou que o fogo tomasse as cortinas e sentiu sono antes que elas, as chamas, tocassem o teto.

Onde ela estava? Era o chão? Era o quarto? Não se lembrava, por um um instante, a última cena que lhe apareceu a mente... Antonio Bandeira, no papel de vampiro Armand, no filme "Entrevista com o vampiro", segurando a moça loira nua e dizendo.... "No pain"! Realmente... Agora seria sem dor. Seu nome? O Nome da moça loira que preencheu sua história nos seus últimos pensamentos... Não é importante, como ela não foi importante, ela vai ser só mais uma pessoa que decidiu que era a hora certa e que ninguém mais vai se lembrar. Ninguém pode salvá-la, ninguém pode ouvi-la, ninguém lhe deu um emprego, a vez sentir útil e amada....

E agora ninguém vai chorar por ela. Pois no fim, ela viveu apenas para ela, como cada pessoa vive por si, como cada pessoa chora por si, e cada pessoa conhece a sua dor... O que ela queria? Que as pessoas tivessem um pouco de compaixão e aprendessem,de verdade a ouvir e ajudar, que aprendessem a ouvir, todas as vozes que normalmente se calam e que não pensassem... "Eu também tenho problemas", mas que pensassem "se eu ajudar o outro vou estar me ajudando". Ela queria que de pouco a pouco todo mundo fosse diferente, que fazer sorrir, fosse mais comum que fazer chorar, no final, ela não deixou sua esperança...

Por que... No final ela não fez nada disso que está escrito, ela não bebeu todo aquele remédio... Ela não desistiu por que era fácil demais, ela... Tomou um banho sim, fez sua pequena bagunça para descontar sua raiva, e tomou apenas um comprimido para dormir. Vodca? Ela nem tinha isso no seu armário. Mas ela pegou o telefone, ela ligou para alguém... Uma pessoa que a ouvia, chorou... Falou, e chorou de novo. E quando ela deitou para dormir, com um vazio no peito como se um peso fosse tirado dali, sabia que no dia seguinte começaria tudo de novo. Mas o amanhecer era único.

Ela sairia de novo, procuraria emprego de novo e tentaria mesmo fazer amizades, mesmo... Sendo idiota.

Vamos imaginar que o nome dela é Idiota. Por que? Ela sente e chora, e faz sentir... Mas ela sabe que desistir nunca é uma opção.




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