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Devaneios

| domingo, 28 de junho de 2009 | |

Os dedos finos tateavam o coração que batia ensangüentado e deslizante. O vidro de fel estava ao lado, em um tom verde deixando-o mergulhar.

- Não preciso disso que me sobre, não preciso que me falte, é apenas um coração, sem sangue para bombear... Embebido em fel é seu lugar.

A voz é suave. Suas entranhas se reviram e mais fundo se tocam tirando de dentro os órgãos quentes.

- Um a um são postos de lado.

Um murmurar e uma canção. Apenas um sonar ao vento frio, a noite escura e aquela lua cheia, tão comum e tão clichê.

Os cabelos balançando junto com a cabeça, os pés dançantes pequenos e molhados, deslizando no musgo verde do chão.

Ela sabia que não precisava, e tudo foi sendo deixado até não restar nada além do cérebro o único órgão.

- Por que esse não? – perguntou uma voz diferente e vinda do nada.

- Eu preciso pensar para ver se ainda dói, para ver até qual dor meus pensamentos me carregam, qual funda é a candoga daqueles que veneram a ignorância e o quanto mais eles vão agir sem saber, tocar sem sentir e falar sem ouvir.

- Quem são eles querida, que voz vós fala o coração, que voz perpetua a discórdia dentro de si?

- Aquela me traz enjôo e dói o coração, meu pulmão que dói ao respirar, o peito que está pequeno com tantas coisas dentro... É preciso deixar espaço, para que tudo caiba e não doa mais. Sem pulmão a respiração não dói, o coração não se parte sem mente e o estomago não pode mais se enojar do fel da estrada de palavras e atitudes.

- Mas quem vós fala? Que importância eles tem?

- A importância da luz no escuro, são poucas, a maioria das velas acabam, quando chega o final do pavio... Pavio envolto em cera como um abraço quente no frio que não existe mais. Não existe abraço, não existe mais palavras, mas se eu não sentir as vozes vão voltar e eu vou ter meu abraço.

- Te daria meu abraço, se pudesse caminhar nas trevas de seu pensamento, e te alcançar naquele medo tão noturno. Na visão turva e nas luzes turvas e no cenário turvo. Como vê agora?

- Não vejo a ti, vejo as luzes como ondas nos olhos se embaçando. O que é isso? São água, que não devia sair mais, e não devia mais turvar a visão.

- Como se sente agora?

- Sinto-me como o vento, o ar e o gelo, sinto-me como um imenso gelo que nada sente, e meus pés estão gelando o sangue não circula mais, e a dor passou... Ao menos a dor não é mais sentida... Não está em palavras e não é palpável. É mais fácil... Acariciar e não notar que onde você está acariciando está em carne viva... Não sabe? Um carinho na carne viva pode doer muito, é a temperatura da mão, o suor que arde e o choque entre as peles. Deve mesmo ser chamado de carinho? Ou de candoga? Eles não compreendem...

- Explique-os. Mostre-os... Esclarecei-vos. A todos e seus sorrisos iram voltar.

- Estão enferrujados e sem óleo. Não posso mais por que dói. Explicar o que não sentem é difícil. Seria muito melhor se eles não falassem, não tocassem do que fazer doer mais ainda. Seria melhor se eles compreendessem, explicar me faz querer a solidão.

- Caixinhas de fel, deixando o vazio interno apenas maior.

- Sem dor... Sem dor. Daqui a pouco vou estar rindo disso tudo... Se estiver viva... Daqui a algumas horas, litros por litros. Quando eles acariciarem não vai doer ou produzir calor.

- Que assim seja... Doce criança.

- Dom Ratinho, foi pegar um teco de toucinho do feijão e morreu afogado... – a voz murmurava e os passos eram distantes. – A dona Carrocinha sua mãe adotiva chorava na rede. – ela começava ao longe. – A noticia se espalhou a porta que rangia... – disse passando mais longe e se sentando. – E uma andorinha que de longe vinha notou a porta abrindo e fechando, abrindo e rangendo...

E o silencio se fez com vidros partindo e pés pisoteando algo.

- O que houve, sempre a vi ranger... E gritar ao abrir e fechar? Perguntou a Andorinha... Dom Ratinho morre, Dona Carrocinha chora, e eu como não possuo lágrimas estou abrindo e fechando para demonstrar minha dor... Por que no conto todos estão chorando quando o Dom ratinho morre?

- Por que o mundo dele acabou, não há mais nada, nem pensamentos, nem falas, sentimentos... Tudo trancado e tudo um mistério, ninguém sabe como Dom Ratinho se sentiu.

- Dom Ratinho morre, porta abre e fecha, passarinho derrubou as penas, arvore derrubou as folhas, o mato secou, o homem cortou a barba, a fonte secou, os garotos destruíram seu balde de água. Por que o Dom Ratinho morreu sua dor não foi sentida, seus pensamentos são um segredo, nem a Dona Carrocinha sabe. O que o Dom Ratinho pensava... Ele sentiu dor, deve ter doía.

- Sim, ele foi queimado vivo.

- Não é essa dor a dor física é mais fácil de ser curada, para algumas dores não se tem remédio.

- Sim, criança... Continue sua história.

- Não mais, o melhor final é aquele que deixa pensar... Fim é uma palavra muito mais bonita que começo.

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